quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Artigo



A obra inacabada ou o pedaço de estrada que virou qualidade de vida
Sérgio Farias
Jornalista


Bonito esse verbo: entardecer. É quando o sol muda de cor, o calor amaina e as famílias começam a chegar pra botar em dia outro verbo de rara beleza: conviver. A cena se passa no trecho inacabado do prolongamento da Avenida Prudente de Morais, conjunto Satélite. São pouco mais de 500 metros de asfalto que a comunidade elegeu como a mais nova área de lazer de um bairro onde os espaços urbanos são escassos, sem atrativos nem manutenção. Caminhar longe dos carros que formigam perto, é muito mais prazeroso. E a vista – um misto de dunas, mata e horizonte dourado – quase que nos obriga a dar o passo seguinte e depois o outro.  Saboroso também é ver as crianças nos seus ritos de iniciação: a lourinha na bicicleta rosa que cansada de pedalar, pergunta aos pais: por que ela não anda sozinha? Mais à frente, um garoto deixa escapar a frustração do primeiro passeio com a caminhonete movida por controle remoto:
– Aí, dancei. Todo mundo brincou com ela e agora a bateria arriou...
Problema que a menininha de cabelo comprido e laço de fita, toda exibida, no seu triciclo motorizado, ainda não sabe o que é.
Ali, naqueles dois traços de asfalto sem serventia oficial, a gente redescobre que a vida é mesmo feita de pequenos prazeres e também de eventuais decepções. Sem dramas. Como a vovó que sentada numa cadeira de praia, espia os netos jogando futebol e sorri satisfeita, talvez lembrando que não teve tempo de fazer o mesmo quando os filhos eram pequenos, porque estava ocupada demais com as coisas da casa...
Dizem que obras inacabadas são dinheiro público jogado fora, não servem pra nada.
Pois por obra e graça da necessidade e do prazer de estarem juntas, famílias da Cidade Satélite encheram de vida, cores e emoção, uma dessas obras condenadas ao escárnio popular. Dá uma vontade que ela fique assim, inacabada, a engenharia humana dando feições de felicidade mínima, ao que depois será como grafado como “novo caminho para o progresso” ou “grande corredor para o trânsito”.
Prefiro olhar para a mata e ver uma jacutinga empoleirada, a barbela vermelha, o olhar assustado, as penas escuras como que mimetizando a noite que cai. É como entrar por um portal dimensional e – numa fração de tempo – contemplar a natureza toda, intacta, nas asas negras de uma ave quase extinta. No fundo eu, as famílias, a jacutinga, as dunas e a mata, somos todos sobreviventes. 
  


Um comentário:

  1. Esse cabra é bom. Pena que seja preguiçoso para escrever.

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