Viva vaqueira
Marcos Bezerra, do Novo Jornal
O vaqueiro acordou cedo e
cedo tomou o caminho do curral para fazer o de sempre: correr as tetas das
vacas mestiças de seu pequeno rebanho, enquanto bezerros magros mugiam,
amarrados na perna da mãe, lamentosos pelas poucas gotas de leite a lhes
sobrar. As bichinhas estavam só o couro e o osso. O capim na vazante do açude
estava no fim; da torta de algodão, que ajudava a melhorar a produção de leite,
não restara nem o cheiro e o farelo de trigo não ia fazer mais do que bucha,
para manter os bichos de pé, enquanto a conta subia no armazém da cidade.
Vendo aquele sofrimento, o
pai levantou da cadeira de balanço e clamou para os céus. Ia praguejar contra a
falta de nuvens e de chuvas, mas antes que conseguisse despencou do alpendre da
casa de fazenda. O tombo não foi fatal, a fratura na bacia é que foi,
consumindo o que restava de energia naquele corpo de mais de 80 anos. Lamentou
ter que passar os últimos dias da vida numa enfermaria, na casa de saúde da
pequena cidade.
O caixão ocupou a sala de um
compadre, que o sítio era longe. Os poucos presentes se dividiam entre a
conversa na calçada e o café na cozinha. Quando não falavam do morto – ele
queria ser sepultado no sítio, mas seria heresia demais não levá-lo ao
cemitério –, o assunto era o inverno que ainda não dera o ar da graça. Aos
enfermeiros, o agora finado tinha confessado que não mais queria sofrer as
agruras de uma seca.
Bem ou mal, os últimos anos
tinham garantido o mínimo de fartura em sua terrinha que comprara a tanto
custo. Chovia pelo menos o suficiente para garantir o pasto e ele,
orgulhoso, via o filho, o único que não tinha debandado para a cidade grande,
tocar a vida. “São dez cabeça, é muito pouco, é quase nada, mas não tem outras
mais bonitas no lugar”, era a música que tocava no rádio da enfermaria quando o
velho vaqueiro passou dessa para melhor. Morreu com um semblante de
tranquilidade, um rosto magro quase sorridente. Foi sepultado no fim da tarde,
na ausência dos filhos distantes.
O dia se fez noite e o tempo
fechou naquele canto de sertão. Mas, ventou mais do que choveu, como acontece
em anos de inverno atrapalhado. Quando o filho retornou para o sítio, na
madrugada seguinte, encontrou a porteira do curral aberta. Com os bezerros
soltos as vacas não dariam leite. Ninguém soube dar notícia do ocorrido. Ocupou
a espriguiçadeira do pai no alpendre e olhou para o céu que clareava
ligeiramente nublado; a mucica no canto da boca em sinal de ironia. Mas não
passou muito tempo sentado, que a lida no campo não se resumia apenas à tirada
do leite. O corpo ainda era jovem para aguentar a retumba de uma seca e não ia
desapontar o velho.
Por fim lembrou da babugem,
que não demoraria a brotar, mesmo com a pouca chuva. E nasceria ainda com mais
força na terra fértil e recentemente revolvida do cemitério.