Regressão
Zenóbio
Oliveira
O rangido da porteira era uma cantiga de tons
nostálgicos, notas de um lamento que ecoavam na alma. Todos os sentidos
dominados pelas reminiscências de outras eras, uma regressão hipnótica que me
conduzia aos tempos infantes, de intempéries, mas de felicidades. Era como está
em outra vida dentro da minha própria existência, numa espécie de anamnese platônica.
A saudade sempre acorda uma lembrança, ou
será a lembrança que desperta a saudade, não sei dizer ao certo. Melhor dizer
que as duas têm uma relação tautócrona e, ainda que afugentadas pela realidade
presente, deixam seus resquícios de melancolia.
Parado ali sobre as ruínas da velha morada,
vislumbrando os vultos e as paisagens de um passado intangível se
materializando como hologramas nas retinas das minhas recordações.
Vi o velho tamarindo, palco dos concertos
harmoniosos dos Pintassilgos e Guriatãs, seus galhos sacudidos pelo vento, a
desfolha constante numa chuva de pétalas de suas flores amarelas; as pinheiras
com seus frutos polpudos adoçando a vida dos Papa-sebos; a fartura de cajaranas
adormecendo os dentes da meninada. As carrapateiras espocando suas amêndoas
numa semeação natural como se adivinhasse o inverno chegando para garantir o
nascimento de suas carrapateirazinhas. Vi a figura de Vovô Zé Carlos, seus
gestos contundentes e sua voz imperativa ralhando dos nossos malfeitos; ainda
escutei os mais velhos nos amedrontando com aquelas historias de Lobisomens e Papa-figos.
De volta do passado, o tempo, esse ímpio senhor
das vicissitudes, carrasco das minhas ilusões, impugna-me todas as lembranças,
constatando que nada mais há alem desse caleidoscópio da memória, que parece acometida
dos sintomas de um Alzheimer temporão.
O tamarindo, as pinheiras, as cajaranas, as
carrapateiras nada mais são do que sensações efêmeras desta mente anciã. Hoje até
os Papa-sebos são raros e os mitos folclóricos morreram assim como os mais
velhos.
Tudo são restos, pedaços de coisas intrometidos
nos escombros de minha infância.
E lá estava a banda do meu pinhão de pereiro
forjado por Chico LQT. Mais adiante a boléia retorcida e enferrujada da minha
caçamba de flandre. Minha roladeira oxidada de lata de Neston, partes
carcomidas do moinho de milho e do ferro de engomar, fragmentos de jarros onde
minha irmã cultivava suas roseiras nove - horas e seus crótons trinta rapazes e
o gogó de um pote onde ainda se via na boca as marcas dos dedos de Madalena.
Não sei o que dói mais: a imaginação reprodutiva
daquilo que um dia foi ou a certeza inexorável do que não pode mais ser. E aí
vem aquele mergulho na saudade para compreender que ela é mesmo como dizem,
tudo o que fica daquilo que não ficou.
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