terça-feira, 31 de março de 2015

Ponto de vista

Racismo no Brasil
Zenóbio Oliveira

O racismo sempre foi um assunto polêmico e permanece ainda veemente nos debates de nossa sociedade hoje em dia. Levando em consideração o preconceito e a democracia raciais como pressupostos desse tema podemos aprofundar a discussão que o envolve. Antes, porem, é preciso compreender alguns acontecimentos que marcaram a história da formação do povo brasileiro.
O nosso povo teve sua formação fundamentada em três bases étnicas continentais: Uma europeia especificada nos portugueses colonizadores, os brancos, outra africana formada pelos negros trazidos como mão de obra escrava e a dos índios nativos o nosso território. O processo formativo se deu por entrechoques classistas, raciais e Inter étnicos principalmente, que envolveram esses três contingentes – índios, brancos e negros – de forma altamente conflituosa. Todos esses conflitos, que se configuraram como força motora da história e da organização social brasileiras culminaram na supremacia dos brancos e consequentemente na subjugação de índios e negros.
O intenso contato étnico entre essas três matrizes originais possibilitou a aculturação e os cruzamentos inter-raciais. Uma espécie de caldeamento que misturou índios, negros e brancos, desde o período da colonização, e que resultou numa miscigenação da cultura brasileira. Podemos apontar como resultado desses cruzamentos inter-raciais o caboclo, mistura do branco com o índio, o mulato, mistura do branco com o negro, o cafuzo, do negro com o índio e o mestiço, como resultado descendente desses cruzamentos. A partir daí, dessa mistura de etnias, é que surgiu a ideia de que o mestiço, produto final desse caldeamento, fosse o elemento constitutivo da identidade nacional brasileira.
Essa miscigenação garantiria naturalmente uma unidade para nossa raça, que, composta por mestiços, teria necessariamente igualdade social e jurídica, a chamada democracia racial, consolidada no Brasil, na década de 1930.
Mas a coisa não é bem assim.
E aqui torno-me concordante com o pensamento do sociólogo Ronaldo Sales, da Fundação Joaquim Nabuco, quando este diz que a miscigenação não conduz à democracia racial porque, na prática, não cria uma categoria homogênea de mestiços, mas, sim, uma hierarquia de subcategorias pela qual quanto mais perto um indivíduo estiver da "matriz branca", maiores são suas chances de inclusão social.
Em verdade, o mito da democracia racial foi construído sobre uma integração subordinada, de maneira progressiva pela abolição da escravatura, pela proclamação da república e pela revolução de 30, como forma de calar os movimentos de luta negros. Atualmente este mito se manifesta nas formas de tratamento – não é negro, nem é preto, é afrodescendente. Nossa sociedade foi conduzida ao regime de cordialidade racial, o chamado regime assimilacionista, em que o negro vai perdendo sua identidade, já que sua negritude se dilui na branquização gradativa.
A discriminação racial saiu do geral para o particular. O racismo passou a ser entendido como preconceito isolado. Mas basta que um negro ascenda à classe social superior, como o novo emergente, o preconceito até então latente se manifesta e logo se diz: __ ele não é um de nós!
O negro foi estigmatizado pelo estereótipo racial. Se for negro é pobre ou marginal. E quando ele sobrepuja essa construção social perniciosa e se destaca num campo de ação historicamente pertencente ao homem branco, fatalmente vai ser classificado como “o negrinho que se deu bem na vida”.   E aí eu volto ao Ronaldo Sales, quando este afirma que “o estereótipo define, assim, um conjunto de expectativas socialmente estabelecidas e que visam à definição de situações cotidianas. É o que ele chama de demarcação racial. Isso faz parte de uma competência social. Essa demarcação até pode ser corrigida, no entanto a correção que se é feita em relação às pessoas negras, aponta para uma quebra de expectativa individual, classificando o negro que transpõe o estereótipo como uma exceção: Negro que venceu, negro bem sucedido... são os negros de alma branca. Para ele, “o conceito de miscigenação no Brasil é usado para validar o mito da democracia racial, tirando dos movimentos negros os argumentos para denunciar o racismo. Mais do que isso: em uma sociedade em que, em tese, não existe raça, racistas são aqueles que falam do racismo”.
A democracia racial até seria possível, mas como bem avalia Darcy Ribeiro, “só ocorrerá quando houver democracia social”. Ou há democracia para todos ou não há para ninguém.
Não é possível haver igualdade perante uma classificação cultural capaz de hierarquizar as raças em superiores e inferiores. Se fosse compreendida apenas pelo seu conceito científico teríamos uma postura democrática verdadeira, porque a ciência define raça como espécie, categoria, sem, contudo, atribuir-lhe distinções biológicas e/ou morfológicas. Raça nada mais é do que a condição humana.. Mas em nossa sociedade, infelizmente para negros, índios, pobres, homossexuais, os valores da nossa cultura não traduzem integralmente as ideias da nossa ciência.

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domingo, 9 de novembro de 2014

Cordel


Eita bixiga taboca
Isso só tem no sertão.
Zenóbio Oliveira

Xarope de Malvarisco,
Pra curar tosse puxada,
Um rosário na portada,
Pra proteger de corisco,
Um cordão de São Francisco,
Pra frear assombração,
Catuaba com limão,
Pra animar velho coroca,
Eita bixiga taboca,
Isso só tem no sertão.

Um pirão de Sabaru,
Na hora da gororoba,
Café de Mangirioba,
Com o mel do Capuxu,
Melador de Cumaru,
Pra curar constipação,
Uma piraca a carvão,
Pra espantar muriçoca,
Eita bixiga taboca,
Isso só tem no sertão.

Uma tigela de fuba,
Peneirada em urupemba,
Um cavalo de catemba,
De talo de carnaúba,
Reza braba que derruba,
Mau-olhado e maldição,
Duas moças num pilão,
Caçulando uma paçoca
Eita bixiga taboca
Isso só tem no sertão.

O povo escutando um jogo,
Num rádio antigo da SEMP,
Um bule em riba da trempe,
Com café pegando fogo,
Uma galinha com gogo,
Babando que só o cão,
Um galo ciscando o chão,
Doido pra achar minhoca,
Eita bixiga taboca,
Isso só tem no sertão.

Tarrafa malha miúda,
Pra pesca de sabaru,
Banha de tejuaçu,
Pra dor de garganta aguda,
O chá da folha de arruda,
Pra descer menstruação,
Ninho de palha no chão,
Pra deitar galinha choca,
Eita bixiga taboca,
Isso só tem no sertão.

Um baú na camarinha,
E um monte de troço dentro,
Uma horta de coentro,
No terreiro da cozinha,
Um poleiro de galinha,
Nos dois ganchos dum pinhão,
E o roçado de feijão,
Precisando duma broca,
Eita bixiga taboca,
Isso só tem no sertão.

Quixó, fojo, landuá,
Arataca e arapuca,
Tocaia, facho, cumbuca,
Mundé de pegar preá,
Anzol, rede de pescar,
Negaça, sangra, alçapão,
Garrucha, funda, facão,
E espingarda de soca,
Eita bixiga taboca,
Isso só tem no sertão.


Batata de macambira,
Pra fazer ração bovina,
Uma cerca de faxina,
Amarrada com embira,
Cortiço de Jandaíra,
Pendurado no oitão,
Um pinto na plantação,
Pinicando tamboroca,
Eita bixiga taboca,
Isso só tem no sertão.

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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

É o que eu digo

A queda da bolsa
Zenóbio Oliveira

Muito tem se falado sobre os tais indicadores econômicos nos últimos dias. Há uma tentativa momentosa de se pejorá-los, através de um linguajar técnico e siglado, como se economia fosse uma entidade fantástica, que não pode ser apreendida por nossa parca inteligência de comedores de feijão de corda.
Aí basta que você ligue o rádio, a tevê, abra um jornal qualquer e lá estão eles: IPCA, IPGM, INPC, IPC, PTAX, SELIC, DI, TR...
Mas a febre do momento mesmo é a tal Bolsa de Valores. Essa cai dia após dia. Nem juá cai desse jeito. A gente liga o rádio e... queda da bolsa; liga a televisão e... queda da bolsa; lê o jornal e... queda da bolsa. E é pra você ficar preocupado, porque quando a bolsa cai a coisa vai mal, ora pois.
Aí eu me lembro que já tive essa preocupação com a queda da bolsa, ou melhor, já tive muito cuidado, mas muito cuidado mesmo, pra não deixá-la cair. Eu devia ter uns oito ou noves anos de idade e, todo dia, eu ia à Ramadinha pegar o leite pra fazer o mingau da minha irmã caçula. Trazia num vasilhame de vidro, dentro de uma bolsa de palha de carnaúba, pendurada no guidão da velha Merck Suisse e o medo que eu tinha da bolsa cair se justificava, pois ali estava em jogo a fome da minha irmãzinha pequena e a integridade dos couros do meu espinhaço.

Hoje em dia não me preocupo mais com queda de bolsa. O leite agora é vendido em saco plástico e transportado de automóvel. A outra bolsa caindo não vai derramar o leite das nossas caçulas, então não somos nós, os comedores de feijão, que temos que nos preocupar em costurar as aselhas dessa bolsa, pois se cair não seremos nós a chorar o leite derramado.

domingo, 24 de agosto de 2014

Crônica

O furto do Queijo
Zenóbio Oliveira

O pedaço de queijo sobre a mesa da cozinha desapareceu misteriosamente. Numa ronda preliminar descartei imediatamente uma ação humana, já que os meninos estavam dormindo. Ampliei a área de busca e encontrei a embalagem vazia no fundo do quintal. Foi aí que elegi os principais suspeitos: os gatos.
Nunca imaginei que gato gostasse de queijo. Até porque queijo é isca de ratoeira, portanto, pela minha formação cultural, são os rivais dos bichanos os verdadeiros consumidores do referido produto. O queijo, no entanto, é um alimento a base de leite e de leite o gato gosta e muito, pelo menos é o que acho.
A certeza mesmo era que um ato de tamanha ilicitude não poderia passar impune, então abri um inquérito e comecei as investigações. Todas as provas recolhidas eram circunstanciais, já que não houve testemunha ocular do fato, a não ser dos outros gatos, mas li em algum lugar que esses bichos são corporativistas. É bom dizer que eu fui, neste caso, o denunciante, o investigador, a acusação, a defesa, o juiz e o conselho de sentença, numa espécie de unicidade policial e jurídica.
As primeiras apurações apontavam para a existência de vinte e oito gatos circulando no perímetro da área investigada. Cores e tamanhos variados, esperteza e agilidade simétricas. Numa análise nos semblantes dos felídeos, concentrei as atenções para os que possuíam mais aquele ar de sem-vergonhice, aqueles com cara de atalhar égua, como diz meu amigo Dix-sept de Graça de Lourival de Romão.
É, mas mesmo eliminando certas características, não estava fácil chegar ao autor do delito. Como disse, cores diversas: brancos, pretos, pardos, ruivos e um pequenininho da cor de bosta de menino novo, que me dava a impressão de ser o único inocente naquele grupo delinquente de felinos. Estava muito difícil fazer um julgamento ilibado. Condenar por esses aspectos provocaria recursos em favor de uma democracia racial, por assim dizer. Ademais, alguns bichinhos eram muito pequenos e poderiam estar fora do limite de maioridade penal.
Não tinha muito que fazer para diminuir as chances de uma condenação injusta. Em reunião de todas as partes atuantes neste processo foi consenso que não haveria como definir autoria exclusiva do furto, pela fragilidade das provas e pelo risco de um veredicto preconceituoso, injusto e descabido. ´
O julgamento, então, foi cancelado antes que virasse um balaio de gatos.
No entanto, para que o tribunal não fosse acusado de ser um gato na bica, ficou decidido que todos são gatos gatunos, desses que dão a unhada e escondem a unha.
E como ninguém quer ser feito de gato e sapato, todos vão ter que responder em outro inquérito por formação de quadrilha.



terça-feira, 5 de agosto de 2014

Crônica

Naquele tempo.
Zenóbio Oliveira

Hoje eu me peguei a lembrar de coisas idas. Fechei os olhos e vi meu pai, Antonio Oliveira, Chico de Panta, Sotero e meus tios Tião e Raimundo Carlos tratando de amenidades na prosa vespertina à sombra da tamarindeira. A abstração lembrançosa me fez vislumbrar aquela cena, pouco e pouco se materializando em aquarela viva nos recônditos da minha memória.
Aí eu tive saudades daquele pé de tamarinda; aí eu tive saudades lá das Aguilhadas; aí eu tive saudades de tudo que vivi por lá.
Como era bom roubar mangas no cercado de Zé Cardozo, desafiando a vigilância de Chaga Bengo-bengo. Como era divertido fazer aquela rima capciosa toda vez que Geraldo Genuíno passava naquela carroça azul e branca, imitar a Siricóia para amuar Cássio de Zé Evaristo, enticar Pissica de Zé jacinto e rir escondido daquela mancha nos lábios de Severino Boca Preta.
Ah como era bom desafiar a vaca Surubinha de Pantaleão, na descida do bebedouro, e escapar fedendo de sua valentia.
Como sinto falta disso...
E dos meus domingos, quando ia à feira só pra comer cocorote na banca de Luzanira e banana casca verde lá em Antonia Boi?
Sinto falta das caronas no Jipe de Zé Cota, de adormecer as pernas, sentado de mau jeito no varão da Merk Suisse lá de casa e do sacolejado da carroça de Anélio no galope desembestado do boi Bem Feito.
Queria me admirar de novo ouvindo a conversa atoleimada de Xoxó sobre o descobrimento do Brasil e dar risadas de suas presepadas, como aquela de chamar de águias um bando de urubus novos, sob os comentários sarcásticos de Carlúcio e Alberto de prefeito.
Queria me assustar outra vez com a visagem do padre na Serra de Abdias e correr na ponta dos pés pra me livrar das oiticicas mal assombradas na passagem de Mané Zacarias.
Ainda sinto na boca o gosto do café de trempe, do pirão de sabaru, do chibéu de fuba com água, ainda sinto no paladar da alma o doce sabor da infância.
Ai quem me dera ter agora o meu pião de pereiro, meu corrupio de caco de cuia, minha roladeira de lata, meu cavalo de talo de carnaúba, minha baladeira de câmara de avião.
Queria poder pescar de anzol sentado nas raízes da oiticica de tio Genésio, jogar mata-sete na correnteza barrenta pra pegar cangati. Queria poder pastorar arroz espantando os xexéus a poder de funda, aguar os canteiros de alho toda manhã e depois pular de ponta lá de cima da Pedra Grande até encarnar o branco dos olhos.


Vocês que me desculpem a falta de conexão nos fatos expostos, mas é a saudade empurrando lembranças amontoadas pensamento abaixo, abalroando emoções dormidas, que não podem mais serem catalogadas. São espécies de recordações anacrônicas salpicando nostalgias pueris nesse meu coração sertanejo, alegre e plangente a um só tempo, enlevado pelas lembranças de um passado quase sublime, mas lastimoso pela crua realidade de um presente de melancolias.

sábado, 26 de abril de 2014

Poema

O vendedor de Berimbau
Chico Pedrosa

Quando Pedro Malazarte
Resolveu se aposentar
Mandou chamar o juiz
E o escrivão do lugar
E passou o cetro a Cancão,
Caçula de seu irmão
E chefe político em Brasília
E Cancão à maneira sua
Até hoje continua,
Assessorando a família.

Os anões do orçamento
Foram alunos de Cancão
Só saíram de cenário
Quando excederam a lição,
Coisa que jamais um dia
Cancão admitiria,
Era trair seus pupilos,
Ou por eles ser traído,
E hoje bem mais comedido
Cultiva novos estilos

No Vale do São Francisco,
Residia um seu parente,
Comerciante ranzinza,
Pior do que dor de dente,
Sovina que só o cão,
Nunca comprou um tostão,
A vendedor viajante,
Na sua mercearia,
Não entra mercadoria,
Comprada a representante.

Viajante aqui comigo,
Num quero nem pro café,
Quem diz isso é Neco Pança,
Nicolau de Canindé,
Na minha mercearia,
Só entra mercadoria,
Passada por essa mão,
Daqui vendedor num come,
Se num quiser passar fome,
Que arrume outra profissão.

Era assim que Neco Pança,
Tratava representante,
Como em todas as camadas
Existe gente pedante,
Neco não era a exceção,
É a força de expressão,
Por ser desconhecedor,
Que entre a oferta e a procura,
Sempre haverá a figura
E a força do vendedor.

Neco Pança Nicolau,
Vende no seu armazém
Tudo que os outros têm
De santo a colher de pau,
Só não vende berimbau,
Porque não gosta do som
Diz que instrumento bom,
É aquele que nem pia,
Mas tudo acabou no dia
Que apareceu Massilon.

Profissional de vendas,
Traquejador, competente,
Soube que Seu Neco Pança,
Alem de ser prepotente,
Nada comprava de fora,
Massilon disse é agora
Que eu pego o véi Nicolau,
Ou mudo de profissão
Eu só digo que ele é o cão
Se num comprar berimbeu.

Mandou tirar de encomenda,
Dezoito feixes de varas,
Doze centos de cabaças,
Mil e duzentas taquaras,
Comprou arame na praça,
Pra cada vara uma braça,
Mandou descascar os paus,
Preparou os caxixis
E fez do jeito que bem quis
Cem dúzias de berimbaus.

Alugou um caminhão
Levou na carroceria
Chegou guardou na cidade,
Guardou na hospedaria,
Antes de dormir pegou
Dez berimbaus amarrou,
Quando o sol se fez presente
Revisou o mostruário
Esperou dá o horário
E foi visitar o cliente.

Foi chegando e foi dizendo
Bom dia Seu Neco Pança,
Tenho prazer de conhecê-lo
Massilon Nunes de França,
Vim-lhe oferecer um cento
Desse moderno instrumento
Feito na Guiné Bissau,
Porque no vosso armazém
Eu já tô vendo que num tem
O sagrado berimbau.

Nem tem, nem nunca vai ter
Esse troço do capeta
Que aqui só vende o que presta,
E por favor num se meta
Tenha vergonha na cara
E tire esse feixe de vara
Da porta de Neco Pança
Bote esses bicho pra lá
Senão eu chamo jajá
Meus homens de confiança.

Mas Seu Neco esse instrumento
Não dá trabalho vender
É só aprender tocar
E o senhor pode aprender
Que ver segure esse pau
Vá girando o berimbau
E balançando o caxixi
Bata com a vara no arame
Pro senhor ver o enxame
De gente chegar aqui.

Já lhe disse que não quero
E nem estou interessado
Massilon disse desculpe,
Té logo e muito obrigado
Se mudar de opinião
Eu to ali na pensão
De Maria Passa Fome
No oitão da padaria
Em frente à delegacia
No beco do lubisome.

Massilon viu que seu neco
Estava quase ferrado
Quando ele disse não quero
Abriu a guarda coitado
Com seus instintos malinos
Massilon bota os meninos
Pra perturbar Nicolau
E todo instante um ia lá
E dizia o senhor já
Ta vendendo berimbau?

Fizeram uma romaria
Que não tinha mais tamanho
A todo instante um rebanho
De menino aparecia
Moleque entrava e saía
Na maior cara de pau
O pobre de Nicolau
Já tava inchando o gogó
 E a cantiga era uma só
Seu Neco tem berimbau?

Três dias nesse rojão
Seu Neco num aguentou
Perguntou a um menino
Diga quem foi que mandou
Vocês vim me perguntar
Eu já to pra estourar
Calma Seu Neco um momento
É o colégio da gente
Que nos pede urgentemente
Esse belíssimo instrumento

Na nossa escola esse ano
Termina o primeiro grau
Mil e trezentos alunos
E o diretor Bacurau
Acabou de anunciar
Pra todo mundo escutar
Quem não quiser levar pau
Nas provas que vai fazer
Esse ano tem que trazer
Cada qual um berimbau.

Como ninguém tá disposto
A ir até Salvador
Comprar tantos instrumentos
Elegemos o senhor
Para nos oferecer isso
Porem se o compromisso
O senhor não assumir
Não podemos fazer nada
Um de nós de madrugada
A Salvador tem que ir.

Neco Pança disse calma
Também num é assim não
Lembrou-se de massilon
Que estava na pensão
E vendo o lucro que ia ter
Disse eu posso fornecer
O que estão precisando
Até o final do mês
Eu entrego de uma vez
Tudo que estão procurando.

Naquele instante Seu Neco
Que se julgava tão bom
Acabava de cair
No anzol de Massilon
À noite foi à pousada
Comprou a berimbauzada
Que antes não quis comprar
E numa ganância infernal
Comprou o material
Sem nem sequer pechinchar.

E fez questão de receber
Sem conferir o produto
Agasalhou numa sala
E ficou aguardando o fruto
Da grande compra que fez
Um dia, dois, cinco, seis,
Terça, quarta, quinta, sexta,
Até que desconfiou
Disse o cabra me pegou
Também quem manda ser besta.

Nunca mais passou ninguém
Procurando berimbau,
O arame enferrujou
O cupim furou o pau
A cabaça apodreceu
O caxixi se rompeu
O dobrão mudou de cor
A vara ficou mais leve
Pra saber que não se deve
Subestimar vendedor.












quarta-feira, 16 de abril de 2014

Poema Matuto

O DISCURSO DO DEFUNTO
Benoni Conrado e Zé Maria

Meu sinhô, me arrepare
Eu ando mêi disgostôso
Não é por minha pobreza
Que eu nunca fui orguiôso
É porque tenho sofrido
Por via d’eu sê medroso

Um dia, me arresorvi
Saí lá donde eu vivia
Pra dá u’as riviravorta
Por onde eu não cunhecia

Pensei logo cá cumigo:
Eu sô um rapaz sortêro
Ta certo, sô mêi feioso
Não sei lê nem tem dinhêro

Mas quem sabe se eu saindo
Dos diabo dessas biboca
Num arranjo inté u’a nêga
Pra tirá minhas caroca

Botei as roupa num saco
Às quatro da madrugada
Me arrecumendei aos santo
E prantei os pé na estrada

Só sei que dessa isquipada
Eu andei uns quinze dia
Mas só no rumo da venta
Sem sabê pra donde ia

Inté que um dia, de tarde
Eu atravessei um rio
Num ia pensando em medo
Mas me deu uns arrepio

Aí foi que eu ispiêi
Achei tudo assim deserto
Cunhecí que ali num tinha
Uma só casa por perto

Por via de num tê casa
Pro mode eu apernoitá
Vi u’a arve infoiada
Maginei: Se eu me atrepá
Sei que é mêi desajeitôso
Mas dá pra me agasaiá

Subi na arve e fiquei
Ta certo que eu não drumia
Mas tava bem iscundido
Porque os gái me cobria
Se passasse argum viviente
De jeito nenhum me via

Mas meu sinhô, quando foi
Mais ou menos doze hora
Eu ouvi uns alarido
Cuma quem canta ou quem chora

Eu arregalei os oi
E avistei u’a multidão
De gente com as voz rouca
Tudo de vela na mão
Eu maginei: é as alma
Fazendo uma procissão

Na frente, avistei um pade
Cum a image do Sinhô
Um sacristão com água benta
Mas ninguém trazia andô

Nesta hora eu respirei
Fiquei todo arripiado
Dispois notei que eles vinham
Caminhando pro meu lado

Bateu-me um medo tão grande
Que eu quage inté me afroxava
Quando eu vi que uns apontavam
Pra dita arve que eu tava

Quando chegaram debaixo
Era dez pessoas ou mais
Uns preguntaram pros outro:
E agora, o que é que se faz?
Um respondeu: é subir
Pra ir buscar o rapaz

Quando eu vi essas palavra
Peguei logo a me tremê
Mas mermo assim: maginei:
Eu num tenho que perdê
Respondi, batendo os dente:
Dêxe, eu mermo vou descê...

Ah, meu sinhô, me acredite
Eu falei mêi arrastado
Mas pode crê, nessa hora
Foi fê o ispatifado

O pade se assombrou
Jogou o santo no chão
O pobre do sacristão
No pade se pindurou

Uma veia inda gritou:
Joga água benta pra trás
Cada qual corria mais
Soltaram a image do Cristo
Parece que tinham visto
Careta do satanás

Eu, vendo aquele istrupiço
Pulei ligêro no chão
Saí correndo também
Mas em outra direção

Na frente eu parei pensando:
Ora essa, tava ruim
Era eu com medo deles
Eles com medo de mim

Dispois que o dia amanheceu
Eu vortei no mesmo canto
Pra vê qual era o motivo
Daquele tão grande espanto

Pois né que de longe eu vi
Um home dipindurado
Bem pertinho donde eu tava
Tinha morrido enforcado

Nessa hora eu compreendi
Qual era o sinificado
O povo vinha buscá
O home suicidado

E quando viram eu falá
Dizendo que ia descer
Pensaram que era o defunto
Danaram a égua a correr

Quando eu cheguei na cidade
Ninguém via outro assunto
Todo mundo só falava
No discurso do defunto

As históra sempre aumenta
Uns dizia: é verdade
O morto falou nas guerra
Nos viço e nas vaidade
No mundo que se arrivira
E quem pensá que é mentira
É só preguntá ao pade

Eu inda fui na eguage
De dizê o que passô
Mas fui descreditado
Ninguém me acreditou

Uns cabôco inda disseram
Esse cabra é mentiroso
Quer se metê nas históra
Pra dizê que é corajoso

Vamos dar-lhe umas esfrega

Quando eu vi esses cuchicho
Lasquei os pé na carrêra
Mas dispois fiz por capricho

Maginando no castigo
Nunca mais contei históra
Voltei prás minha biboca
Porque lá tô sem perigo

E quem tiver qualquer segredo
Pode me contá sem medo
Que eu me lasco, mas não digo