segunda-feira, 23 de abril de 2012

ARTIGO


Viva vaqueira
Marcos Bezerra, do Novo Jornal

O vaqueiro acordou cedo e cedo tomou o caminho do curral para fazer o de sempre: correr as tetas das vacas mestiças de seu pequeno rebanho, enquanto bezerros magros mugiam, amarrados na perna da mãe, lamentosos pelas poucas gotas de leite a lhes sobrar. As bichinhas estavam só o couro e o osso. O capim na vazante do açude estava no fim; da torta de algodão, que ajudava a melhorar a produção de leite, não restara nem o cheiro e o farelo de trigo não ia fazer mais do que bucha, para manter os bichos de pé, enquanto a conta subia no armazém da cidade.
Vendo aquele sofrimento, o pai levantou da cadeira de balanço e clamou para os céus. Ia praguejar contra a falta de nuvens e de chuvas, mas antes que conseguisse despencou do alpendre da casa de fazenda. O tombo não foi fatal, a fratura na bacia é que foi, consumindo o que restava de energia naquele corpo de mais de 80 anos. Lamentou ter que passar os últimos dias da vida numa enfermaria, na casa de saúde da pequena cidade.
O caixão ocupou a sala de um compadre, que o sítio era longe. Os poucos presentes se dividiam entre a conversa na calçada e o café na cozinha. Quando não falavam do morto – ele queria ser sepultado no sítio, mas seria heresia demais não levá-lo ao cemitério –, o assunto era o inverno que ainda não dera o ar da graça. Aos enfermeiros, o agora finado tinha confessado que não mais queria sofrer as agruras de uma seca. 
Bem ou mal, os últimos anos tinham garantido o mínimo de fartura em sua terrinha que comprara a tanto custo.  Chovia pelo menos o suficiente para garantir o pasto e ele, orgulhoso, via o filho, o único que não tinha debandado para a cidade grande, tocar a vida. “São dez cabeça, é muito pouco, é quase nada, mas não tem outras mais bonitas no lugar”, era a música que tocava no rádio da enfermaria quando o velho vaqueiro passou dessa para melhor. Morreu com um semblante de tranquilidade, um rosto magro quase sorridente. Foi sepultado no fim da tarde, na ausência dos filhos distantes.
O dia se fez noite e o tempo fechou naquele canto de sertão. Mas, ventou mais do que choveu, como acontece em anos de inverno atrapalhado. Quando o filho retornou para o sítio, na madrugada seguinte, encontrou a porteira do curral aberta. Com os bezerros soltos as vacas não dariam leite. Ninguém soube dar notícia do ocorrido. Ocupou a espriguiçadeira do pai no alpendre e olhou para o céu que clareava ligeiramente nublado; a mucica no canto da boca em sinal de ironia. Mas não passou muito tempo sentado, que a lida no campo não se resumia apenas à tirada do leite. O corpo ainda era jovem para aguentar a retumba de uma seca e não ia desapontar o velho. 
Por fim lembrou da babugem, que não demoraria a brotar, mesmo com a pouca chuva. E nasceria ainda com mais força na terra fértil e recentemente revolvida do cemitério.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Artigo

Faltou o Rinha
Marcos Bezerra, do Novo Jornal

O meu Caicó, que tanto apanhou quanto deram nele no Estadual, foi rebaixado para a segunda divisão potiguar. Quem também devia ser rebaixado para a segunda divisão da Libertadores, caso ela existisse, era o Flamengo, pela desclassificação em um dos grupos mais perebas da competição. Mas, confesso, gostei da dose de adrenalina na noite de quinta. 
Tratamos de torcer aqui mesmo na redação. Flamengo 1 a 0 em cima do Lanús, da Argentina. E o jogo lá no Paraguai, ainda no 0 a 0. Eu e Rafael, otimistas soldados rubro-negros em meio a tantos anti-flamenguistas - é duro ser torcedor do clube de maior torcida no Brasil porque as minorias se juntam para torcer contra. Fizemos o segundo e já estava de bom tamanho. Aí, vai que o Olímpia faz um gol. Decretei o fim das chances, afinal o Emelec não teria time para ir para cima. Virei equatoriano desde menininho e passei a reclamar da cera dos jogadores paraguaios no início do segundo tempo. 
O Flamengo absoluto em campo e a esperança renovada com o empate do Emelec. A improvável classificação ainda era possível. Aí o Emelec vira o jogo e os flamenguistas viram Olímpia desde menininhos. E não é que os paraguaios foram lá e empataram o jogo. Vibramos, eu e Rafael Duarte, na redação, e 34.999.998 milhões de rubro-negros no resto do Brasil. Rafa, mais fanático que eu, correu para o abraço, afinal, aos 46 não havia tempo para mais nada... Ou quase. Diabo, pra que esses caras foram ceder um escanteio? Pensei e lamentei o terceiro gol do Emelec e a nossa desclassificação. 
Ainda apareceu quem dissesse que o time tinha feito a sua parte. Vão catar coco, os jogadores e a diretoria! Eles têm mais a perder que nós, torcedores, muito embora não levem isso em conta. Alguns torcedores também não e sofrem além da conta. Lamento apenas termos sido desclassificados quando finalmente o Gaúcho (mais de R$ 1 mi por mês) resolveu jogar bola. Por que não fez isso antes? 
Não fez e viramos motivo de gozação; montagens pululam na internet. Vamos ter que nos contentar com Tufão na sua Avenida Brasil. “Pode chiare, pode frescare, pode mangare”, bem dizia o vascaíno Zenóbio Oliveira em um de seus muitos causos. Não me incomodo e ainda acho que faltou uma: lembram daquele gandula que impediu um gol do Sergipe no seu Guarany de Porto de Folha? Pois bem, Givanilson dos Santos Alves, conhecido como Rinha, tem o Flamengo como uma das paixões de sua vida. Faltou Rinha debaixo da trave do Olímpia, no mesmíssimo canto esquerdo. Só ele para impedir, com sua paixão e reflexos rápidos, o gol do zagueiro equatoriano Luis Quiñonez. Falta só quem faça a montagem, na internet, do “corpo estranho” e rubro-negro em campo.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

VERBO AD VERBUM

Menina de ouro.
Zenóbio Oliveira


A saleta da casa lotérica estava empanzinada com tanta gente. Era preciso perguntar mais de uma vez para descobrir onde era o rabo da fila, que serpenteava numa aglomeração atrapalhada. Duas atendentes pra dar conta desse povo e mais uma para os clientes preferenciais, que formavam uma fila menor, composta por idosos, grávidas, mulheres com crianças de colo, portadores de deficiência e, claro, alguns amigos da moça do guichê.
Na fila comum se contava, assim por cima, umas quarenta pessoas, na outra, umas dez.
Tem de tudo numa fila: tem a senhora que difama a falta de estrutura do lugar; tem sempre alguém lembrando a lei dos trinta minutos como prerrogativa popular; tem o amigo da pessoa da vez, com um carnê na mão, pedindo um favorzinho de última hora e tem aquele cara que, de quando em quando, tenta lhe confundir sobre qual seja seu verdadeiro lugar. Nesse dia um cidadão chegou a ganhar três posições e só não conseguiu a minha, porque na hora virei cavalo do cão e tive a solidariedade do rapaz a minha frente. VADE RETRO...
O que mais chamou a atenção, porem, foi uma mocinha de uns vinte e poucos anos que adentrou o recinto e foi direto para a fila preferencial, atraindo para si todos os olhares desconfiados. Nada lhe justificava a atitude. Jovem, aparência sã e um corpo de fazer inveja a juventude de Elizabeth Savala.
Sob olhadelas e buchichos, serena e altiva, não se descompôs e cinco minutos mais tarde estava na boca da cabina. Virou-se para a porta e acenou para outra mocinha que lhe entregou uma criança de uns quatro anos mais ou menos. Ela escanchou a menina no quadril e, com a ajuda da amiga retirou de um saco um punhado de papéis de água, luz e outras contas indistintas. Pagou, pôs a garotinha no chão e saiu olhando de canto para os bestas que estavam naquela formação pandemônica há mais de uma hora.
Vendo toda a facilidade e rapidez no atendimento àquela jovem que usou o jeitinho para obter uma espécie de permissão especial da lei, não contive o entusiasmo e gritei: Moça, me empreste a menina!