sexta-feira, 30 de março de 2012

Crônica

Minha doida Mossoró
Marcos Bezerra, do Novo Jornal

Só vi agora, depois que o vídeo se transformou num viral da internet, a história dos gêmeos mossoroenses Diego e Diogo, 27 anos e nenhum pingo de juízo entre as orelhas. Os caras pegaram o carro do pai, nove mil reais em dinheiro e resolveram ir para Brasília para protestar pela liberalização da maconha. Foram presos em Salvador fazendo flexões numa das vias mais movimentadas da cidade. 
Na delegacia, diante de uma repórter que insistia num bordão “o sistema está bruto”, um deles, Diogo ou Diego, não sei qual, se mostrou mais inteligente que a moça. Ela insistia em saber por que os rapazes tinham ido parar em Salvador. “Porque a gente... Nós somos livres. Você não é livre? Porque eu quis vir para cá!”
Os pais foram buscá-los e já estão de volta a Mossoró, onde cuspiram mais uma pérola: “Somos duas pessoas santas. Só fazemos trabalhar, fumar nossa maconhazinha e comer e dormir bem.” 
Não sei se é porque em mim falta, mas convivo bem com quem não tem juízo. E esse convívio, pelo trabalho nas ruas, foi especialmente fértil na temporada mossoroense de minha vida. O que de melhor escrevi, acho, foi “Pedro, o anjo”, uma crônica para o centenário O Mossoroense, incluída no meu livro Toalha de Mesa, sobre um maluco que assumia várias personalidades no decorrer do dia. Pedro Neto era tudo o que sugeríssemos para ele; petroleiro, motorista, cantor, fotógrafo. Quem é da terra sabe, a lista não tinha fim. Terminou sendo, na morte, o anjo que foi durante toda a vida. 
Recentemente, arranjei assunto para outra crônica. Perdido no HD ultrapassado e com pouco espaço que é o meu cérebro está o destino de Cesinha do Fusca, assim conhecido pelo amor que devota à baratinha da Wolksvagem. Cesinha, um mulato pequeno e com deficiências física e motora, não podia ver um fusca que caía de amores por ele. Paixão desmedida que resultava numa relação sexual com o capô arredondado do distinto veículo. Não chamam de capô de fusca? Pois bem, Cesinha tratava de cuidar dos que encontrava, agarrar e, se não aparecesse ninguém, só largar depois do gozo consumado. 
Ali, por trás da igreja matriz de Santa Luzia, um senhor que vende utensílios domésticos na calçada, onde Cesinha ia catar algumas moedas todos os dias, disse que a irmã não deixa mais o desajuizado sair de casa. Está gordo e robusto, mas trancafiado. Se ainda tem os inseparáveis carrinhos de plástico, que carregava debaixo do braço, ele não soube dizer. Mas, seria castigo demais privá-lo também de seus brinquedos. 
Reabram as portas do mundo para Cesinha e que Diogo e Diego continuem livres... Pelo bem da Terra da Liberdade.

sábado, 17 de março de 2012

Vida boa que segue
Marcos Bezerra, do Novo Jornal


Semana passada eu era o homem mais feliz do mundo. Estava a caminho do sertão com promessa de chuva. Minha mulher confirmou o que escrevi. Disse que meus olhos brilhavam e um sorriso espontâneo aparecia sempre que falávamos da viagem, muito embora ela fosse durar menos de dois dias.
Saímos daqui no sábado debaixo de vendaval. Não fosse o risco da pista molhada somado à pressa nossa de cada dia, seria o melhor dos mundos. A chuva nos acompanhou além de Bom Jesus; o sereno até quase Tangará. Ainda pegamos duas pancadas de chuva antes de Currais Novos. Como previ, a vegetação da caatinga tinha vestido seu melhor verde.
Não choveu em Caicó e o retorno à infância, com um banho nas biqueiras da Rua Pe. Sebastião, ficou para a manhã do domingo. Combinei com um amigo de dar um pulo no Rio Seridó. Mas, acordei mais cedo do que o previsto com o desespero de nossa prima Lilia chamando; mamãe não estava bem. Encontramos dona Cícera deitada na cama, com o olhar perdido no mundo e sem nenhuma reação. A pressão chegou a 22 por 12. Lembrei meu pai. Seu Antonio morreu em 1986 no mesmo dia em que eu e meu irmão Neto chegamos de Natal. Chorei, pensando se minha mãe tinha me esperado.
Foram os homens do Corpo de Bombeiros - o Samu não chegou a Caicó - que levaram Ná Ciça, como a chamo carinhosamente, para o hospital. Assustada, numa cadeira de rodas e tentando reclamar da sorte. Logo ela que é o exemplo de hipocondria. Perdi a conta das vezes que mamãe nos pediu para levá-la ao pronto-socorro pois a hora dela tinha chegado. O hospital do Sesp tinha apenas um clínico geral e uma enfermeira de plantão. E minha mãe com suspeita de AVC. Enquanto tentávamos com o plano de saúde uma ambulância para transferi-la, preparava o espírito para o pior. Colei o rosto no dela e cheirei até não mais poder seus cabelos brancos. “Hum?” era tudo o que ela conseguia dizer. Mesmo medicada, não antes de fazermos uma consulta com um cardiologista pelo telefone, Ná Ciça só foi reagir quando chamei a atenção para o fato da enfermeira ser Nóbrega, e de Santa Luzia, na Paraíba, terra do pai dela. Mamãe desatou a conversar. “Vou fazer 38 anos semana que vem”, brincou invertendo os números.
Lembrei uma propaganda onde um cachorro começa a elogiar o carro do dono. Por que nunca falou antes? Estava sem assunto! Vai ver mamãe também estava. Arranjou e continuou falante na viagem até Natal. Veio ao meu lado, no banco do passageiro. No domingo, dormiu no hospital. De lá para cá já foi a não sei quantos especialistas. Apesar da suspeita de AVC, está bem. A prima escudeira Lilia, acha que foi milagre.
Ná Ciça liga para mim de vez em quando, para falar de coisas que já achei desimportantes. Não acho mais e dou toda a atenção possível. E é só uma retribuição. Ela sempre se despede dizendo que reza por mim todos os dias.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Todo dia é dia de poesia

Ser poeta
Sá de Freitas

Ser poeta é ser livre como o vento,
É Sentir-se um irmão da Natureza;
É Captar - da vida - o encantamento;
É Expulsar - de si - toda a tristeza.

Ser poeta é sonhar intensamente,
Sem deixar de viver a realidade;
É Descrever, em versos, livremente,
A paz do amor e a dor de uma saudade.

Mentalmente é viajar pelo Universo,
E tentar relatar, num simples verso,
Tudo o que sente e tudo o que vai vendo.

Ser poeta é sorrir, mesmo chorando;
É, às vezes, chorar, mesmo cantando;
É Sentir-se feliz, mesmo sofrendo.
Ser Poeta
Florbela Espanca


Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

domingo, 11 de março de 2012

Poesia Pura

A CUMEEIRA DE AROEIRA LÁ DA CASA GRANDE
Jessier Quirino

Oh! cumeeira de aroeira lá da casa-grande
Veja e nos mande uma visão dessa velha morada
Sendo a parada retilínea do telhado em quedas
Não te arredas dessa empena tão estruturada
Sois a chegada de telheiro, ripa e caibaria
Hospedaria de pavões, corujas e pardais
Nos teus anais e cabedais de vida em cumeeira
Diz aroeira – dessa casa – o que enxergas mais?

- Pelas janela e portais lá da sala da frente
Vejo contentes e voantes espreguiçadeiras
Relaxadeiras de alpendre junto à rede armada
Lonas listradas, cores-vivas, vidas de cadeira
As choradeiras de avencas pendem dos frechais
E os fuás das trepadeiras jasmineiras voam
Blusas magoam com bateres as saias das portas
E vejo hortas de verduras que nos afeiçoam.
Esta é a visão daqui de cima que meu olho expande
Eu, cumeeira de aroeira desta casa-grande.

Vejo o cimento avermelhado do piso da sala
E nesta sala quatro portas e quatro janelas
Cor amarela combinando com retrato antigo
E pouco artigo de mobília se avista nela
Uma janela abre as asas por cima dum cofre
Atrás do cofre inclinado: rifle e mosquetão
Um birozão de escritório, uma banca de rádio
E junto ao rádio uma cadeira balança no chão.
Esta é a visão daqui de cima que meu olho expande
Eu, cumeeira de aroeira desta casa grande.

A sala interna sem janelas vive apenumbrada
Iluminada pelas frechas vindas do telhado
O decorado do bufê é uma ceia-larga
E se alarga grande mesa de pau trabalhado
De lado a lado, quatro portas, uma a cada quarto
Sala de parto dos bruguelos por ali nascidos
Vejo o florido de lençóis, de redes e armários
E os sanitários de penicos neles escondidos.
Esta é a visão daqui de cima que meu olho expande
Eu, cumeeira de aroeira desta casa-grande.

Segue o comprido estendido da sala do meio
No arrodeio rumo ao fundo grande petisqueiro
O quarteleiro de comidas, louças e talheres
Onde mulheres abrem e fecham pelo dia inteiro
Alvissareiro é o vão que surge mais adiante
A confortante copa-grande junto da cozinha
Sala-rainha, mesa farta, tamanho banquete
Com tamboretes, bancos largos, banca de quartinha.
Esta é a visão daqui de cima que meu olho expande
Eu, cumeeira de aroeira desta casa-grande.

Vem a cozinha festa em festa pelo dia inteiro
Um verdadeiro alegreiro de se cozinhar
O esquentar de um fogão de lenha braseado
E outro fogão de ferro inglês de branco cintilar
Tem o abrir e o fechar do móvel azul pintado
Amorcegado de canecos, conchas e peneiras
A paneleira aramada pende da parede
E mata a sede o pote frio na porta traseira.
Esta é a visão daqui de cima que meu olho expande
Eu, cumeeira de aroeira desta casa-grande.

Meias paredes me permitem essa visão de encanto
Em cada canto um armador e rede ali dobrada
Tampas curvadas de baús e luz de candeeiros
E o padroeiro em oratório de vida velada
As alpendradas lado a lado, não consigo vê-las
Meias-paredes se esbarram no caixão da casa
Mas são terraços com arreios, silos e ferretes
Nos pilaretes as gaiolas com mimos de asa.
Esta é a visão daqui de cima que meu olho expande
Eu, cumeeira de aroeira desta casa-grande.

Em campo aberto de quintal, ciscados de terreiro
O galinheiro estaqueado de varas ao fundo
Meio oriundo da cozinha surge uma puxada 
E a batucada de pilão de segundo a segundo
Vejo cisternas e tonéis de interno cimentado
Que são represas pros banhados canecos de flandre
O sanitário é um chalezinho lá no fim da casa
Visto daqui da cumeeira desta casa-grande.

NÓS E AS ABELHAS
Sérgio Farias
Jornalista

O endereço é pomposo e a vizinhança solene: o palácio potengi, a assembléia legislativa, o tribunal de justiça. Alheias ao que se passa nos bastidores do poder, abelhas decidiram fixar morada bem no meio da praça sete de setembro. Pra ser mais exato, bem num rasgo aberto pelo tempo no bronze oco no qual a jovem senhora república foi moldada. E estão por lá  faz tempo: motorista da assembléia  há mais de 15 anos, José ferreira, o  Zeca , assegura:  quase invisíveis, elas já zumbiam por aqui , bem antes de quando ele chegou. “É morada muito antiga”, especula escaneando com o olhar o entra-e-sai dos insetos prodigiosos. Não há notícia de ataques, nem do sabor do mel que fabricam ou quanto voam por dia pra conseguir o pólen vital de que precisam. A persistente colméia serve como mais um alerta sutil e ao mesmo tempo, dramático: a forçada convivência das abelhas com os passantes, em pleno coração da cidade, é sinal de que alguma coisa mudou e se perdeu. O  sofá onde você pode estar sentado agora, poderia muito bem ser uma árvore, de uma mata, onde abelhas como as que moram na estátua oca da praça sete de setembro, tinham uma colméia e faziam mel...

sábado, 10 de março de 2012

VERBO AD VERBUM

Que vida boa...
Marcos Bezerra, do Novo Jornal

Emparn prevê chuvas fortes nos próximos dias! Li mais de uma vez para ver se acreditava na manchete on line. Outro site confirmava que seriam chuvas em todo o estado. E até sexta-feira. Uma semana de chuvas; notícia boa para começar bem o dia, de quem, mesmo morando nas franjas do litoral não esquece o torrão natal, até bem pouco tempo castigado pelo sol inclemente.
Refiz meus passos nas férias e encontrei o sertão seco como sempre. Quente também. E me peguei pregando o otimismo diante da minha parentada que já sofria os efeitos da longa estiagem. Janeiro, fevereiro e nem sinal de chuvas nas regiões Seridó e do médio-oeste. Tentei convencer meu tio Bertino que os meteorologistas haviam previsto um período chuvoso dentro da normalidade. E ele, como um profeta popular do tempo, baseado na observação da natureza, insistindo que não ia ter inverno. “O joão-de-barro está fazendo a casa virada para o nascente; formiga fazendo formigueiro dentro do rio...”, reclamava tomando a brisa da tarde na calçada de sua casa, em Janduís. Como contestar mais de 70 anos de experiência?
Aí, de volta para o conforto da cidade grande, sigo a monitorar o tempo, como me ensinou o professor José Espínola, lá da Ufersa, de Mossoró. Na visão dele, as chuvas no semiárido nordestino dependiam basicamente da zona de convergência intertropical - na minha compreensão torta, uma coluna grossa de nuvens que se forma no norte do Oceano Atlântico e que, quando desce, provoca chuvas em abundância. No site do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos - aprendi com o professor - dá para acompanhar fotos de satélite atualizadas num período curto de tempo. Vejo que as nuvens carregadas cobrem praticamente todo o estado e torço para a tal zona de convergência continuar estacionada sobre a gente. Ainda mais porque estou a caminho do meu sertão.
Que vida boa... Tomar o prumo da terrinha na expectativa de topar com um tempo chuvoso. Quem sabe um banho nas biqueiras do centro, onde minha mãe ainda mora. Quem sabe gritar “abaixe a mão, Mãe de Deus!”, como fazíamos na infância para pedir mais chuva. Certo é que, chovendo no interior potiguar, vou encontrar um mundo verde pelo caminho. Nada da paisagem ressequida que sempre serve para retratar a caatinga. A jurema é planta besta e uma chuva só, que nem precisa ser muito intensa, já é suficiente para ela recuperar a folhagem e exibir o seu melhor vestido. Tomara que a festa no sertão não fique só nisso e o cenário de fartura se complete com a cheia dos rios e a sangria dos açudes.
Quero andar na feira livre e ouvir a conversa dos agricultores dando notícia das chuvas. Serei feliz entre felizes. Talvez não tanto quanto meu amigo Sérgio Farias. A última mensagem que ele me enviou veio encerrada com um maiúsculo: “ABÇS E UM BOM INVERNO!”

sexta-feira, 9 de março de 2012

CARTÃO-POSTAL
Fabiano Régis
            

            Era 1978. No final da tarde do dia 25 de agosto, podiam-se contar os raios de sol que iluminavam a pedra lisa da serra, a suntuosa torre da matriz e a palmeira-imperial de copa rala. O entardecer me pareceu único, festivo, combinando com a inauguração da primeira agência bancária daquela cidade de poucas ruas. Todo mundo estava lá, com suas roupas de missa. Não esperei os doces. Assim que a filarmônica entoou o hino nacional, fui para casa, pois já era noite. Uma noite que parecia ser de pouco sono... É que na manhã seguinte era a minha posse como “Menor Aprendiz”.                          O uniforme azul celeste, com um engomado especial, pernoitou intocável no encosto da cadeira, ofuscado pelo brilho dos meus sapatos pretos. O galo do meu quintal me despertou com falsete, e pelo furo da tramela eu vi o clarão do grande dia. Caminhei a passos largos para o novo: mobília, máquinas de escrever e calcular, cofre, moeda, gerente, subgerente, contrato, custódia e hipoteca. Abrem-se as portas da agência e não demorou muito para que cadeiras e sofás fossem ocupados, com futuros clientes. Sem conhecer a razão, surge um homem esguio, com voz de desprezo, apontando o dedo em minha direção:
- O que esse jaburu tá fazendo aqui? Eita bicho feio!
O dono da voz era um cidadão bastante conhecido na cidade, um misto de agricultor e comerciante. Diante daquela cena, arregalei os olhos, encarei o interlocutor em silêncio, tentando entender aquele absurdo. De volta para casa no fim do expediente, encontro a minha mãe, ansiosa pra saber das novidades. Em desabafo, falei do “episódio jaburu”. Minha mãe abraçou-me e, cheia de orgulho, falou:
- Você não sabe o quanto estou feliz em saber que você foi comparado a um jaburu! -Fiquei surpreso com a reação da minha mãe.
- Até você?!
- Essa ave, meu filho, é considerada um símbolo do pantanal. O nome científico é jabiru mycteria, ela tem penas brancas na cauda e asas e papo vermelho, contrastando com cabeça, bico, pescoço e pés negros, podendo chegar a um metro e sessenta de altura e até três metros de envergadura, de uma ponta da asa aberta à outra, sem falar no bico, que mede trinta centímetros! – Explicou-me mamãe.
O conhecimento em profundidade da minha mãe sobre essa espécie me fez entender que aquele homem, na mais completa ignorância, ao me achar feio e comparar a um “jaburu”, não estaria me desqualificando. Passado alguns minutos, ainda no aconchego dos braços da minha mãe, resolvi questioná-la:
- Onde foi que você viu um jaburu, para falar com tanta propriedade dessa ave?
- É que ontem pela manhã o carteiro me entregou um envelope que Júlia, minha prima, mandou do pantanal. Dentro do envelope tinha um cartão-postal, com a imagem de um jaburu, de beleza exuberante!
Hoje, quando vejo a expressão Jaburu, lembro-me da explicação de minha mãe e um sorriso desce dos lábios. Ah, se todos soubessem, como ela, o íntimo de uma palavra qualquer...

Crônica

Árvores na urbe
Sérgio Farias
Jornalistas

A cidade cresce para o alto e depressa. Ao rés do chão, os carros se multiplicam, o trânsito emperra... Prédios encaixotam pessoas, enterram quintais. Carros precisam de ruas pavimentadas.  O asfalto enterra a terra por onde a água escoa e o mato cresce. Diante de tantos prédios, diante de tantos carros, impossível não pensar: mais que carros, mais que prédios, a cidade precisa é de mais árvores.  Árvores que filtram e perfumam o ar, dão frutos, regulam o clima e oferecem de graça, pra todo mundo, a sua sombra generosa.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Debaixo do tamarindo.
Zenóbio Oliveira

A flor do tamarindo lá do meu terreiro,
Tem um cheiro de amor que nunca finda,
A flor do tamarindo lá do meu terreiro,
Tem um cheiro de amor, morena linda.

Escrevi no teu destino,
A história da minha vida,
Os meus sonhos de menino,
Minha paixão incontida,
Meu pranto, minha alegria,
Minha esperança menina,
Só pra ver você um dia,
Debaixo do pé de tamarina.

Quando o galo saudou a madrugada
Coloquei os molambos na sacola
Misturei-me a poeira da estrada
Com a cara, a coragem e a viola.
E no trajeto de minha romaria
A saudade no meu peito não termina
Quero encontrá-la qualquer dia
Debaixo do pé de tamarina.

Vejo a pétala da flor que se espedaça
Na bruteza da bala do canhão
Eu sou o fio tênue de uma raça
Humilhada e maltratada no sertão
Que tira leite de pedra todo dia
Nessa luta de leão que só termina
Quando é noitinha nos braços de Maria
Debaixo do pé de tamarina. 

Artigo

Alma sertaneja


Marcos Bezerra, do Novo Jornal


Quem faz uso da palavra escrita deve desconfiar de um tema recorrente. Ainda mais quando a idade começa a cobrar uma conta que fizemos sem querer. Tenho a impressão que estou voltando a um assunto que já desenvolvi antes, mas, vale a pena ser repetitivo quando em defesa do que acreditamos.


Até meus sei lá quantos anos, tinha o orgulho todo do mundo de morar na cidade que tinha o maior açude do Rio Grande do Norte. “O Itans tem seis léguas d’água”, cuspia para dar uma ideia do tamanho do reservatório. Depois construíram a barragem de Açu e outras, que transformaram o gigante de minha infância num reservatório mediano. Mas, preservei a admiração pelo açude, construído no lombo do jumento. Ele, que ajudou a consolidar Caicó como cidade polo do Seridó, guarda uma magia só explicada pela importância da água numa região onde ela é preciosa de tão escassa. Até a sangria, um tanto quanto sem graça diante das maiores que encontrei nas minhas matérias de invernada, ganha uma beleza ímpar quando os caicoenses vão quase em procissão ver de perto o que consideram um espetáculo, uma promessa de fartura.


Aí vem o Ibama determinado a tirar todos os clubes do entorno do Itans. Parece que todos eles foram embargados, incluindo o dos funcionários do DNOCS, órgão que administra o açude. É determinação do Ministério Público Federal, diz o superintendente do Ibama. Será que ele, ou quem determinou o embargo, tem ideia do tamanho do prejuízo que pode causar aos habitantes da região. Será que, sentados em seus gabinetes refrigerados, estes senhores têm ideia do tanto que o açude é importante para o povo do lugar como opção de lazer? Ou eles querem que fiquemos a 100 metros da margem do reservatório, medido quando ele está cheio, 200, 300 no período seco, olhando de longe a lâmina d’água que o sol se encarrega de evaporar, enquanto o mormaço e a poeira lambem nossos rostos?


Quando um cristão constrói na beira de um açude, tão na beira que quando o rio, de barreira à barreira, faz o reservatório transbordar e a água vai bater-lhe no batente, ele está prestando uma reverência. É quase como o fiel que chega ao altar e reza diante do santo de sua devoção. Que se façam as adequações, com sistemas de saneamento para preservar os reservatórios, mas querer acabar com essa tradição é pedir demais.


Ah! Agora tenho certeza que o tema é mesmo recorrente. Escrevi sobre, outro dia, reclamando de como iam ficar minhas manhãs/tardes sem um tucunaré frito com tomate e cebola, acompanhado de uma cerveja bem gelada, nas margens do bom e velho Itans. Pois é, ainda tinha o tucunaré. Os doutores que decidem preservar o que já tratamos como sagrado, podiam tirar um dia de lazer na beira de um açude. Iam entender que estão atentando contra uma instituição sertaneja.

sábado, 3 de março de 2012

VERBO AD VERBUM

Pensando assim...
Zenóbio Oliveira

Na seção dos cereais, ensimesmado em meio ao burburinho monótono do supermercado, reclamei do preço da farinha. Era pra ser somente uma reflexão, mas o pensamento ganhou forma, escapuliu da abstração e precipitou-se goela afora:
 __ A farinha ta muito cara!
Nesse momento o tato de uma mão firme em meu ombro arrastou-me à realidade e colocou-me defronte com a argumentação segura e convicta de uma senhora que passou a justificar a carestia do produto. Disse-me que era compreensivo ter o preço que tinha, frente à dificuldade de sua confecção e foi esmiuçando as etapas do processo, desde o plantio da mandioca até a sua chegada às gôndolas do estabelecimento comercial.
__ Dá muito trabalho pra fazer, meu filho!
Peguei a ver, num compacto de lembranças, Seu Benigno, com uma corriola de filhos e netos, ora plantando, ora arrancando a mandioca lá no roçado da Gangorrinha. No filme das minhas reminiscências era possível até escutar o tropel dos jegues ligeiros, levando o produto nos caçuás para a desmancha e o reco-reco das quicés das senhoras raspando as batatas na farinhada. A moagem, a prensa. Vi o suor de Zé Cassaco escorrendo aos borbotões, enquanto manipulava o rodo, espalhando a massa na bandeja do forno em brasa. É, dá mesmo um trabalhão. Tive ciência disso.
Olhei dentro do carrinho e imediatamente atribui equivalência de custo ao feijão, ao arroz, à massa de cuscuz e ao óleo vegetal.
Quando cheguei à fila da carne, idealizei na memória todas as fases do processo de criação de gado. Do nascimento do bezerro ao seu ponto de corte. Numa espécie de auto-afirmação e de estímulo à minha própria convicção, meu subconsciente ainda escancarou a porteira do curral e soltou todo o rebanho, só pra dificultar a empreitada. De repente abriu-se outra tela na parede das minhas lembranças, na qual vaqueiros destemidos metiam-se mata adentro, deixando pedaços da pele pendurados nas unhas afiadas da jurema, para recapturar as reses em disparada.
É. Dá mesmo um trabalhão. Tive ciência disso e até achei pouco os quatorze e noventa e nove que paguei por um quilo de coxão duro.