domingo, 24 de agosto de 2014

Crônica

O furto do Queijo
Zenóbio Oliveira

O pedaço de queijo sobre a mesa da cozinha desapareceu misteriosamente. Numa ronda preliminar descartei imediatamente uma ação humana, já que os meninos estavam dormindo. Ampliei a área de busca e encontrei a embalagem vazia no fundo do quintal. Foi aí que elegi os principais suspeitos: os gatos.
Nunca imaginei que gato gostasse de queijo. Até porque queijo é isca de ratoeira, portanto, pela minha formação cultural, são os rivais dos bichanos os verdadeiros consumidores do referido produto. O queijo, no entanto, é um alimento a base de leite e de leite o gato gosta e muito, pelo menos é o que acho.
A certeza mesmo era que um ato de tamanha ilicitude não poderia passar impune, então abri um inquérito e comecei as investigações. Todas as provas recolhidas eram circunstanciais, já que não houve testemunha ocular do fato, a não ser dos outros gatos, mas li em algum lugar que esses bichos são corporativistas. É bom dizer que eu fui, neste caso, o denunciante, o investigador, a acusação, a defesa, o juiz e o conselho de sentença, numa espécie de unicidade policial e jurídica.
As primeiras apurações apontavam para a existência de vinte e oito gatos circulando no perímetro da área investigada. Cores e tamanhos variados, esperteza e agilidade simétricas. Numa análise nos semblantes dos felídeos, concentrei as atenções para os que possuíam mais aquele ar de sem-vergonhice, aqueles com cara de atalhar égua, como diz meu amigo Dix-sept de Graça de Lourival de Romão.
É, mas mesmo eliminando certas características, não estava fácil chegar ao autor do delito. Como disse, cores diversas: brancos, pretos, pardos, ruivos e um pequenininho da cor de bosta de menino novo, que me dava a impressão de ser o único inocente naquele grupo delinquente de felinos. Estava muito difícil fazer um julgamento ilibado. Condenar por esses aspectos provocaria recursos em favor de uma democracia racial, por assim dizer. Ademais, alguns bichinhos eram muito pequenos e poderiam estar fora do limite de maioridade penal.
Não tinha muito que fazer para diminuir as chances de uma condenação injusta. Em reunião de todas as partes atuantes neste processo foi consenso que não haveria como definir autoria exclusiva do furto, pela fragilidade das provas e pelo risco de um veredicto preconceituoso, injusto e descabido. ´
O julgamento, então, foi cancelado antes que virasse um balaio de gatos.
No entanto, para que o tribunal não fosse acusado de ser um gato na bica, ficou decidido que todos são gatos gatunos, desses que dão a unhada e escondem a unha.
E como ninguém quer ser feito de gato e sapato, todos vão ter que responder em outro inquérito por formação de quadrilha.



terça-feira, 5 de agosto de 2014

Crônica

Naquele tempo.
Zenóbio Oliveira

Hoje eu me peguei a lembrar de coisas idas. Fechei os olhos e vi meu pai, Antonio Oliveira, Chico de Panta, Sotero e meus tios Tião e Raimundo Carlos tratando de amenidades na prosa vespertina à sombra da tamarindeira. A abstração lembrançosa me fez vislumbrar aquela cena, pouco e pouco se materializando em aquarela viva nos recônditos da minha memória.
Aí eu tive saudades daquele pé de tamarinda; aí eu tive saudades lá das Aguilhadas; aí eu tive saudades de tudo que vivi por lá.
Como era bom roubar mangas no cercado de Zé Cardozo, desafiando a vigilância de Chaga Bengo-bengo. Como era divertido fazer aquela rima capciosa toda vez que Geraldo Genuíno passava naquela carroça azul e branca, imitar a Siricóia para amuar Cássio de Zé Evaristo, enticar Pissica de Zé jacinto e rir escondido daquela mancha nos lábios de Severino Boca Preta.
Ah como era bom desafiar a vaca Surubinha de Pantaleão, na descida do bebedouro, e escapar fedendo de sua valentia.
Como sinto falta disso...
E dos meus domingos, quando ia à feira só pra comer cocorote na banca de Luzanira e banana casca verde lá em Antonia Boi?
Sinto falta das caronas no Jipe de Zé Cota, de adormecer as pernas, sentado de mau jeito no varão da Merk Suisse lá de casa e do sacolejado da carroça de Anélio no galope desembestado do boi Bem Feito.
Queria me admirar de novo ouvindo a conversa atoleimada de Xoxó sobre o descobrimento do Brasil e dar risadas de suas presepadas, como aquela de chamar de águias um bando de urubus novos, sob os comentários sarcásticos de Carlúcio e Alberto de prefeito.
Queria me assustar outra vez com a visagem do padre na Serra de Abdias e correr na ponta dos pés pra me livrar das oiticicas mal assombradas na passagem de Mané Zacarias.
Ainda sinto na boca o gosto do café de trempe, do pirão de sabaru, do chibéu de fuba com água, ainda sinto no paladar da alma o doce sabor da infância.
Ai quem me dera ter agora o meu pião de pereiro, meu corrupio de caco de cuia, minha roladeira de lata, meu cavalo de talo de carnaúba, minha baladeira de câmara de avião.
Queria poder pescar de anzol sentado nas raízes da oiticica de tio Genésio, jogar mata-sete na correnteza barrenta pra pegar cangati. Queria poder pastorar arroz espantando os xexéus a poder de funda, aguar os canteiros de alho toda manhã e depois pular de ponta lá de cima da Pedra Grande até encarnar o branco dos olhos.


Vocês que me desculpem a falta de conexão nos fatos expostos, mas é a saudade empurrando lembranças amontoadas pensamento abaixo, abalroando emoções dormidas, que não podem mais serem catalogadas. São espécies de recordações anacrônicas salpicando nostalgias pueris nesse meu coração sertanejo, alegre e plangente a um só tempo, enlevado pelas lembranças de um passado quase sublime, mas lastimoso pela crua realidade de um presente de melancolias.